O sucateamento das ferrovias brasileiras criou situações inusitadas. Na região, por exemplo, os trilhos da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, que outrora levavam sonhos de passageiros e riquezas para os grandes centros, nem sequer possui mais tráfego ferroviário. Entretanto, há pequenas composições particulares, construídas de forma improvisada, que circulam pelas linhas que sobraram. É o caso do grupo “Tremqueira”, de Avaré, que costuma viajar alguns quilômetros pela Sorocabana com um veículo construído sobre rodas de campana de uma perua Kombi.
É praticamente o único “trem” a rodar pelos trilhos da Sorocabana — e somente em alguns trechos, pois eles sequer existem mais em alguns locais. Na região de Canitar, por exemplo, houve furto de trilhos e uma boa parte está quebrada. A Rumo Logística, que assumiu o trecho e outras linhas ferroviárias em todo o Estado, abandonou a Sorocabana porque o trajeto não dá lucro. Desde a privatização, no governo de Fernando Henrique Cardoso, não houve qualquer investimento das empresas na malha ferroviária da Sorocabana. Ao contrário, toda a eletrificação ferroviária foi retirada e os dormentes apodreceram em vários pontos. Em Bernardino de Campos, o dono de uma fazenda cercou os trilhos na beira da rodovia vicinal e usa a área para criar gado, já que o trem deixou de passar pelo município há muitos anos. O mato toma conta de toda a malha ferroviária, de Avaré até Presidente Prudente.
Na Justiça, não há decisões enérgicas que obriguem as concessionárias a restaurarem o que sobrou da ferrovia. Quase todas infringem os contratos de privatizações. Há anos, o Ministério Público Federal luta pela reativação da ferrovia, inclusive na Sorocabana, mas os processos são lentos. O MPF firmou vários TACs — Termos de Ajustamento de Conduta — para a restauração dos trilhos, mas a antiga ALL (atual Rumo) não cumpriu praticamente nenhum. Nas ações, há denúncias de que a concessionária abandonou totalmente o trecho da Sorocabana entre Presidente Prudente e Ourinhos, “com sérios prejuízos à região”.
Avareenses: Enquanto o descaso apodrece as ferrovias, alguns grupos de amantes do trem agem para manter um certo movimento nos trilhos. Em Avaré, por exemplo, surgiu o “Tremqueira”, como foi batizado o grupo formado por cinco amigos que se reencontraram depois de muitos anos. Em comum, a paixão pela ferrovia.
Um deles, o empresário Orestes Trabagli, 60, que morou nos Estados Unidos, contou certa vez aos amigos que, naquele país, as companhias permitem a utilização da linha férrea para lazer. “Aquilo ficou na nossa cabeça e planejamos fazer o mesmo na linha abandonada da falecida Estrada de Ferro Sorocabana”, disse Kleber Silveira, 63, um profissional de vendas do ramo de impermeabilizantes. Os outros integrantes do grupo são o professor Amauri Albuquerque, 48, o mecânico Carlos Alberto Forlini, 60, e o restaurador de motos Cláudio Oliveira, 60.
O primeiro desafio foi construir o veículo, feito sobre um tablado em cima de um chassi de viga metálica com rodas de campana adaptadas de uma Kombi. O motor é um Honda CG 150, que impulsa o veículo até 55 quilômetros por hora, velocidade considerada alta para o trecho precário dos trilhos. “A média é de 30 km/h”, explicou Kleber.
A princípio, seria só colocar o “Tremqueira” nos trilhos e partir. No entanto, havia sérios obstáculos, pois a ferrovia está abandonada, sem tráfego há mais de dez anos — nem dos pequenos “autovia”, veículos para manutenção — e havia até árvores trancando a via. Em muitos trechos, os dormentes estão podres.
Os amigos, então, resolveram fazer aquilo que a concessionária não faz. Com foices, machados e até motosseras, eles começaram a limpar os trilhos enquanto trafegavam com o “Tremqueira”. Nada de descansar nos finais de semana e feriados. O trecho entre Barra Grande e Cerqueira César, com 18 quilômetros, foi totalmente limpo. “Agora há um novo desafio, o trecho Cerqueira César-Manduri, de 16 quilômetros, que está cheio de mato e barreiras provocadas pelo deslizamento de terra nas chuvas.
Depois, o grupo pretende seguir para o trecho Manduri-Bernardino de Campos. “Este está ruim, é o pior dos três”, aponta Kleber. Seguir até Ourinhos, então, ainda é impraticável porque há falta de trilhos na antiga linha férrea. Apesar do trabalho árduo, o grupo garante que se diverte e, ao mesmo tempo, faz uma homenagem à antiga Estrada de Ferro Sorocabana. O objetivo, dizem, é passear, transportar todos que querem ver a ferrovia de perto, a custo zero. E, de quebra, ver de perto o descaso em relação ao mais importante meio de transporte do século passado. (Jornal Debate)